28.6.06

Todos de branco na rua




Acordou às pouco mais de seis com o despertador tocando havia quase dez minutos. Sua mulher já estava de pé, fazendo o café. Morno e aguado. Você não sabe mais fazer café? perguntou. Você ainda sabe fazer alguma coisa? Estava sem camisa – não queria sujá-la. Passava manteiga na torrada murcha. A mulher não respondeu, era sempre melhor não responder. Ele insistia Você não sabe fazer café? Responde quando eu estiver falando, porra!

Gritou tanto que seu filho de ano e pouco acordou assustado e começou a berrar no berço. Só me faltava essa agora, resmungou, dando um soco na mesa. A mulher então resolveu falar. Deixa de ser tão escandaloso, você acordou o menino, não é você que tem que cuidar dele, sempre sobra pra mim, eu que tenho que fazer tudo,

Não conseguiu terminar de falar. O marido levantara no meio da frase e lhe presenteou com um tapa no rosto. Ela cambaleou e ele repetiu a dose. Ela se apoiou na pia. Cala essa boca, disse ele, eu não agüento mais você! Ela gritou, começou a chamá-lo de cachorro, de animal, de filho da puta. Tinha a faca de limpar peixe na mão, atacou-o faca em riste. Mas o marido era mais forte, segurou seu pulso e arrancou-a de sua mão. Piranha! Vagabunda! Mais três tapas e um soco na barriga. A mulher apoiou-se novamente na pia, mas perdeu o equilíbrio e caiu. O filho berrava a plenos pulmões no quarto, um berro estridente e incessante e irritante.

O marido foi até o quarto. Socou seu filho no rosto, de mão fechada. Pegou o menino por baixo dos braços, jogou-o no chão e pisou em sua barriga. A criança choraria mais alto, se mais alto fosse possível chorar. Cala a boca, cala a boca seu merdinha! Um tapa de mão aberta ao lado do rosto. O garoto ficou em silêncio.

Olhou para o relógio, gotas de suor brotando devido a todo o exercício. Estava atrasado, culpa daquela vagabunda e daquele pedacinho de merda. Sua mulher soluçava sentada no chão da cozinha. Que cena patética. Pisou em suas pernas espalhadas, vestiu sua camisa branca pendurada na cadeira e saiu. Sentiu o tecido grudar na sua pele suada. Havia culpados para aquele desconforto, culpados que depois seriam punidos, aqui se faz aqui se paga.

A multidão já se aglomerava, no final da praia, para mais uma passeata. Cumprimentou seus amigos com um sorriso no rosto, sorriso largo de rosto iluminado. Apertou mãos e deu abraços. E sua mulher?, lhe perguntaram. Ela não pôde vir, respondeu, não estava se sentindo muito bem. Pôs o boné oficial da passeata, pegou um dos ramos de flores que eram oferecidos e juntou-se à multidão já em marcha. Com a alma exaltada, juntou sua voz às muitas que gritavam um Basta à violência na cidade.

26.6.06

Felipão Futebol Clube

Muito se comemorou, ontem, a sofrida vitória de Portugal sobre a Holanda. Muito se celebrou o "feito histórico" de Luiz Felipe Scolari, o Felipão, ao fazer com que a equipe lusitana passasse de primeira fase, coisa que há quarenta anos não acontecia. Tudo muito bom, não fosse o jogo de ontem o mais feio que já vi em toda minha vida.

Galvão Bueno a todo instante repetia que o time de Portugal tinha a cara do Felipão. Fato raro, concordo com ele: era um grupo que jogava um futebol feio, retrancado e extremamente violento. Não que a equipe holandesa fosse lá muito gentil, mas em nenhum momento ela teve sua "raça" destacada -- como aconteceu com os portugas.

Continuo acreditando que Portugal vença esta Copa (ou que, pelo menos, chegue à final), mas o jogo de ontem me decepcionou demais -- especialmente pelo destaque todo que foi dado à excelência(?) do Felipão, que devia assumir de uma vez que treina rúgbi, não futebol.

24.6.06

Notícias de um assalto particular

Móveis quebrados. Sangue espirrado pelo chão e pelas paredes. Ninguém está morto. Ainda. Amarrado na cama, um casal bem-sucedido. Apontando armas para ele, um casal malsucedido, cujo único sucesso até então havia sido conseguir render os donos da casa.

Ele: moreno, magro, um metro e setenta e dois e dois dentes a menos. Treme muito e poderia chamar-se José. Ela: morena mais clara, cabelos alisados, carnes fartas, cheiro de Leite de Rosas. Não usam máscaras, não usam disfarces, não usam pedir licença antes de assaltar pobres pessoas desavisadas. “O senhor é o seu Paulo?” “Eu mesmo” “Eu vim ver o relógio de luz” “Tudo bem”. Entrada na casa, rendição, princípio de luta. Neiva chega em seguida, calibre 22, discreta, prática, confortável. Casa isolada no Itanhangá, quintal amplo e caseiro de férias.

Ele: gordo, cabelos levemente grisalhos, olhar superior de executivo que não se cansa de ganhar dinheiro. Paulo de Almeida Gomes Frota. Tem o supercílio cortado, cabeça de José franzino no olho direito. Arranha as mãos nas cordas tentando soltar-se, como fazem os amarrados nos filmes de ação. Ela: idade indefinida, cabelo indefinido, postura indefinida. Quilos de plástica, maquiagem e alienação moldaram sua personalidade o suficiente para fazer da filha de datilógrafa uma mulher respeitável. Olha as paredes sujas de sangue, sangue de seu marido que dava o sangue pelas paredes sujas de sangue.

Ela cata as jóias, revira as gavetas, enquanto ele mantém o casal sob a mira da arma que ela trouxe. Silêncio perturbado por suspiros de pessoas amarradas e jóias colidindo entre si. Neiva inveja as jóias, queria tê-las. Vai tê-las. Trabalha em silêncio, ritmo febril nos dedos, a pressa, a pressa. Ouve sirenes chegando, polícias arrombando a casa, portas de cadeia fechando nos intervalos da respiração forte do dono da casa. José treme todo, como um todo, o dedo trêmulo enfiado no aro do gatilho. Olho de ódio tem seu Paulo, sua mulher tenta enxergar-se pelo espelho. Boa história para contar enquanto lixa as unhas à espera de sua vez no salão.

Neiva olha José. José olha Neiva. Haviam acabado as jóias, mas já tinham o suficiente para considerar uma produção razoável. Queriam morar no Itanhangá, mas moravam na Rocinha. As jóias ajudariam a pagar o aluguel por muitos meses, não importava quantos aumentos houvesse. José sentiu-se Paulo. Sorriu e chamou Neiva, que abraçada a ele sai da casa. Um belo pôr-do-sol no jardim. De mãos dadas, experimentam a verdadeira felicidade.

19.6.06

go with the flow

Luvas de borracha. Cacos de vidro. Cheiro de amônia e desinfetante. Não importava mais, nada importava mais, apenas a intensa sujeira deixada por eternas gerações de animais carnívoros herbívoros onívoros que se refestelavam em meio às próprias fezes e tripas e orgasmos múltiplos que rolavam por suas coxas abaixo. Qual seria o novo engano cometido por tal espécie abominável? Não se sabia, jamais se saberia. Era apenas um gole estouvado. Estou. Estouvado. Estufado.

Acreditas em mim, mamã?

Seria ele mais alguém inconseqüente e inconsistente, fedendo a sabonete e querosene, que não encontrava espaço para respirar? Risadas. Gargalhadas. Gordos escrotos sorrindo, as banhas pulando garganta afora numa pulsão mórbida e nociva. Jesus! Jesus!, bradavam os mais exaltados. Há que se aguardar na fila. Todos terão a sua vez, declarou muito assoberbado o sadomasoquista de terno de tafetá e pantufas de macaco. Fizera um retorno triunfante, dias antes, carregado pela multidão de coelhos sem face. Tinha suásticas nos olhos e âncoras nos tornozelos. Não sabia muito bem o que era o que, mas enganava muito bem.

Amônia/Insônia/Amoníaco

Risoles de camarão inconsciente. Um eco solto, bradando pelo espaço, repercutindo em nada. O vácuo é nulo e nele encontramos o zero absoluto de Kelvin, Calvin, Haroldo, Hobbes. Whaddafuck. Escorpiões em Toledo. Maricones em Torpedo. Pêssegos em calda, caudalosas caudas de carnaval. Experi-menta! Experi-menta! Experi-menta! É muito seguro jogar sozinho, é lógico, simples soldados em fila, mas nada mais é doce. Não há nada doce para se jogar fora nem por que se morrer nem que seja belo para se viver. Acreditas? Acreditas na sua cabeça?

I can go with the flow but it doesn't matter anymore.

14.6.06

Escola Galvão Bueno de locutores

Cléber Machado: Eu tenho um comentário que vai desagradar o torcedor suíço.
Sérgio Noronha: E qual é?
C. M.: O Zidane começou a gostar do jogo.

Então, Zidane mata a bola no peito e acaba o primeiro tempo.

12.6.06

Mais uma vez

Este blogue, de acordo com meus cálculos, é o oitavo que inicio desde que aderi à moda, em meados de 2001. Cinco anos, portanto, sendo mais ou menos bem-sucedido. Dando uma olhada nos textos antigos que havia escrito, encontrei o que reproduzo abaixo, redigido em novembro de 2002, que bem pode servir como abertura novamente.


Hoje este blogue está oficialmente (e pela terceira vez) nascendo. Por isso, nada melhor que falar de morte.

Dizem que pra morrer basta estar vivo. Mas "estar vivo" e "morrer", apesar do significado aparentemente inquestionável, são coisas muito mais vagas do que parece à primeira vista. Biologicamente, é fácil falar de vida e morte. Existem sinais indiscutíveis para considerar alguma coisa viva e para saber quando ela deixou de estar. Assim como se ela jamais viveu em toda sua existência.

Mas existem outros sinais, menos técnicos - e, por isso, mais complicados e obscuros - que demonstram a existência ou não de vida. Qual a diferença entre uma samambaia e uma pessoa que permanece sentada e inerte num canto, sem tomar nenhuma decisão, a baba escorrendo pelo canto da boca, o limo crescendo entre os neurônios? Tecnicamente, ambos estão vivos - mas é como se não estivessem. Ambos ficam parados. Submissos. Passivos. Mortos. Para uma samambaia, é compreensível. Para uma pessoa, é inaceitável.

Não me refiro só aos revolucionários de poltrona, que bradam "isso é uma vergonha!" diante de qualquer mazela que seus indignados olhos vêem no Jornal Nacional e que é esquecida assim que começa a Novela das Oito. Revolução é difícil de fazer, está fora de moda. Me refiro, isso sim, àquelas estátuas de bronze enferrujadas, guardadas num canto escuro, úmido e esquecido, que permanecem em seu incômodo lugar embora tenham pernas para fugir para qualquer outro ponto do planeta. Às vezes, uma fuga nem é necessária. Olhar pra outro canto, virar a cabeça, já é suficiente. Mas as pessoas-samambaia, inertes mortas e fétidas, não têm força para isso. Ou talvez não queiram ter.

Pra gente assim, vida e morte não faz diferença, assim como pra um bloco de granito não importa estar inteiro ou destruído a marretadas. A boca permanece semi-aberta, a baba escorrendo lentamente, a vontade de fazer qualquer coisa permanece apenas vontade, quando vontade chega a ser. Vida e morte se confundem pras pessoas-samambaia. Pra morrer, nesses casos, não falta nada.

7.6.06

Raul Seixas sou eu

Era uma noite fria no Centro de Niterói. Não sei dizer quantos graus fazia, mas era o suficiente para sentir frio mesmo usando uma camisa de mangas compridas e tendo tomado uma garrafa de vinho. Estávamos nos organizando para entrar nos carros que nos levariam ao próximo bar para continuar a comemoração, já que aquele em que estávamos havia fechado mais cedo para que fosse feita a faxina anual.

As meninas e o motorista (por acaso, o aniversariante) já haviam entrado no carro que nos transportaria. Na calçada, o escultor e eu esperávamos nossa vez. Então fomos surpreendido pelo coroa das pulseirinhas.

"Vocês são os dois homens mais bonitos deste bar", disse ele, sem nenhum motivo aparente. "Você até parece o Janequine", acrescentou, dirigindo-se ao escultor. Ele riu. "Ganhei a noite", comentou. Dei a ele os parabéns e toquei o coroa no ombro, agradecendo. "Você também é muito bonito", emendei. Fomos andando para o carro, já que só faltávamos nós para entrar, e o coroa ia atrás elogiando todo mundo. Lindos, lindos, simpáticos, juvenis. Foi então que ele disse que eu era a cara do Raul Seixas. Tinha sido a segunda vez em dois dias.

No dia anterior, minha mulher e eu andávamos pelo Centro de Campos depois de ter ido à bienal do livro de lá. Estávamos ansiosos pra ir, a televisão anunciava como um evento colossal, e no final o que encontramos foi duas dúzias de estandes (sendo mais da metade um subgrupo dispensável que incluía livros evangélicos, de criança, ou ambos) amontoados num parque de exposição que fedia a boi. Fiz boas aquisições lá, no entanto: Jack London, Bukowski e Henry Miller.
Passeávamos pelo calçadão movimentado quando, em frente a uma agência do Itaú, uma cara muito estiloso (parecido com o "Pica-Pau" do Ídolos) veio nos oferecer um empréstimo. Perguntou como um agiota: "Quer um empréstimo?" Como não estávamos precisando, recusamos e continuamos andando, quando ele emendou outra pergunta:

"Você já pensou em ser sósia do Raul Seixas?" Aí eu parei e olhei pra ele. Havia falado sério. Já haviam me comparado a muita gente, mas até então nunca ao Raulzito. Pensei em alguma resposta espirituosa que pudesse dar a ele, mas como não encontrei nenhuma, disse apenas que Não. "Então vai nessa, cara. Você pode ganhar uma grana." Agradeci o conselho e nos despedimos com um cumprimento também super estiloso. Tudo no cara, aparentemente, tinha toneladas de estilo.

E aí o coroa tinha dito a mesma coisa e isso me ficou na cabeça. Àquela altura, já estava com a cabeça pra dentro do carro, recitando uma poesia (até interessante, mas da qual nada me lembro) sobre adjetivos e substantivos para os sete que lá dentro nos empilhávamos. "Querem comprar uma pulseirinha da Copa?", perguntou, e então entendemos porque ele queria nos agradar tanto. O motorista-aniversariante comprou e ligou o carro. Nos despedimos e o coroa disse por fim: "Não percam o Programa do Jô no dia 13, eu vou estar lá." Esse é um programa que não pretendo perder.

1.6.06

Aike Ku e o sentido da vida

Tardinha, céu alaranjado do poente, eu bebia vinho gelado à beira da praia. Desocupados jogavam bola nas sujas areias de Charitas, senhoras iam e vinham com suas celulites balouçando ao vento, flanelinhas corriam atrás de carros para extorquir. Era uma tarde perfeita para grandes descobertas filosóficas.

Então Aike Ku apareceu, com passinhos miúdos e o boné bem preso na cabeça para não despentear seu sedoso cabelo de japonesa. Vinha carregando uma bandeja de contrabando, oferecendo-o aos passantes por preços módicos. Uma negativa ali, outra ali, Ku acabou chegando a mim. "Qué dá uma oiadinha?", perguntou-me com sua voz fina, carregada de sotaque coreano. Olhei para Ku com ar blasè. Já ia dispensá-la quando me deparei, entre os chaveiros que apitavam, os óculos de plástico e os pingentes luminosos, bem reluzente e imponente à minha frente, com o sentido da vida.

-- Quanto custa? -- perguntei, trêmulo, apontando o objeto.
-- É quinze reais.

Vasculhei os bolsos. Não dispunha de tanto (é mentira, dispunha, mas queria gastá-lo em mais vinho) e comecei a regatear. Ofereci dez, ela recusou, ofereci doze, ela ameaçou ir embora, ofereci treze, ela disse que não podia. Fiz então minha última oferta:

-- Quinze reais, nada mais que isso.

Ela pensou por um tempo e por fim aceitou. Deu-me o sentido da vida e eu, muito feliz por ter feito um excelente negócio, entreguei-lhe o dinheiro. Sorriu daquele jeito que só as chinesas sabem e afastou-se com seus passos miúdos. Deixei o vinho de lado e fiquei contemplando o objeto. Enfim, em minhas mãos, o sentido da vida! Examinei-o por todos os lados e, por fim, com as mãos tremendo de êxtase, resolvi abri-lo.

E ele quebrou, como toda porcaria taiwanesa que esses malditos vietnamitas vendem na praia.